Trote universitário é crime? Em caso de violência, quem deve ser responsabilizado? Há formas saudáveis de integrar novos alunos às universidades?

No VECast de hoje falamos sobre o polêmico trote universitário. Será que essa prática é crime? Se não, é de todo ruim? Confira o episódio de hoje com uma entrevista exclusiva com a presidente do Centro Acadêmico de Engenharia (CAEng) da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Vamos à pauta!

O que é o trote: estabelecendo a terminologia

Neste VECast, definimos como trote estudantil, ou simplesmente trote, um conjunto de atividades realizadas com estudantes recém-ingressantes, chamados de calouros, em uma instituição de ensino. Essas atividades são organizadas e realizadas, geralmente, por alunos mais antigos, chamados de veteranos. Embora muito comum em instituições de ensino superior, a atividade também é praticada no nível médio. Assim, podemos traçar o histórico dessa atividade.

Histórico do trote

O trote é basicamente tão antigo quanto as universidades, tendo seu início na Europa, na época da Idade Média. Nessa época, era comum retirar e queimar as roupas dos calouros e raspar seus cabelos, com a justificativa de evitar a propagação de doenças. Mesmo nessa época, as universidades tentavam coibir os excessos, que já eram comuns.

Em Portugal, os primeiros episódios de trotes que se tem registro remontam o século XVIII na Universidade de Coimbra. O trote chega no Brasil importado por jovens que cumpriram seu processo educativo em Portugal. A prática é continuada até que, em 1831, ocorre a primeira morte em decorrência da atividade: um estudante da faculdade de direito de Olinda, Recife. Estamos acostumados a ver as autoridades do Brasil tomando providências somente quando algo sério, como a morte de um cidadão, ocorre devido a uma atividade realizada sem controle. No caso do trote, uma morte não foi suficiente.

Nos últimos 35 anos, quatro casos de trotes violentos que resultaram em morte foram registrados no Brasil. Além desses, existem diversos relatos de casos absurdos que, mesmo não resultando em morte, seriam passíveis de punição civil ou criminal. A seguir, listamos alguns desses casos, com base nesse artigo da wikipédia, e nesse artigo da advogada Alessandra Strazzi:

  • 1980 – Universidade de Mogi das Cruzes (SP): Carlos Alberto de Souza, de 20 anos, calouro do curso de jornalismo, morreu de traumatismo cranioencefálico resultante de agressões praticadas por estudantes veteranos.
  • 1990 – Fundação de Ensino Superior de Rio Verde (GO): George Mattos, 23 anos, calouro do curso de direito, morreu de parada cardíaca enquanto tentava fugir de veteranos.
  • 1999 – Universidade de São Paulo (USP): Edison Tsung Chi Hsueh, calouro do curso de medicina, morreu afogado após ser obrigado a entrar em uma piscina sem saber nadar durante um trote.
  • 2009 – Faculdade Anhanguera (SP): Bruno César Ferreira, 21 anos, calouro do curso de veterinária, entrou em coma alcoólico após ser obrigado a consumir bebidas, o estudante também foi obrigado a rolar em uma lona com animais mortos e fezes em decomposição.
  • 2009 – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (RJ): Vitor Vicente de Macedo Silva, 22 anos, morreu afogado em uma piscina de saltos ornamentais.
  • 2010 – Unicastelo, em Fernandópolis: alunos foram obrigados a fumar, tirar as roupas íntimas, pedir dinheiro em semáforos e até beber álcool combustível.
  • 2010 – Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP): um estudante foi agredido e teve ossos do nariz e do rosto quebrados.

Em todos os casos citados, é possível ver a natureza repugnante desses atos. Ainda assim, existem calouros e veteranos que defendem e praticam o trote como uma forma de reconhecimento social. Além disso, o fato de não existir uma fiscalização eficiente no país e as instituições não adotarem providências mais incisivas, faz com que a prática do trote continue constrangendo estudantes de todo o país, podendo chegar a casos mais graves de agressão e morte.

Se você ainda não se convenceu de quão prejudicial são essas atividades, confira as seguintes reportagens (título em negrito com subtítulo ao lado:

Se alguns dos casos narrados nas reportagens citadas são crimes, porque o trote ainda é uma atividade comum? Os responsáveis pelos crimes foram presos? Quem são os responsáveis por essas atividades? Quem deveria ou poderia responder legalmente?

Legislação

Diversas instituições de ensino têm punido a prática do trote vexatório ou violento com suspensões e até expulsão dos envolvidos. Alguns alunos ainda ficam proibidos de participar de diversas atividades acadêmicas, como intercâmbios, caso tenham organizado trotes.

No âmbito legal, recentemente, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de São Paulo, que investigou denúncias de violações de direitos humanos em universidades paulistanas, encerrou suas atividades no dia 10 de março de 2015. O relatório final reúne em torno de 9 mil documentos de trotes violentos e depoimentos de sete mulheres estupradas em festas universitárias. O relatório foi encaminhado a autoridades brasileiras e ao papa Francisco (já que duas das universidades denunciadas são vinculadas à Igreja Católica. O mais interessante é que o documento apresenta mais de 30 recomendações e, uma delas é a de que os trotes praticados em universidades brasileiras sejam classificados como crime de tortura no Código Penal Brasileiro. Mais informações sobre a CPI podem ser encontradas neste artigo.

Além da CPI, diversos estados e cidades brasileiras qualificam o trote estudantil como crime. Dentre os estados brasileiros que criminalizam o trote podemos citar o estado do Rio de Janeiro e de São Paulo. No Rio, a lei que proíbe o trote vexatório em calouros das universidades e faculdades localizadas no estado do Rio de Janeiro também determina que os praticantes do trote devem pagar multa de 50 Unidades de Valor Fiscal do Estado (UFERJs) e o pagamento de 100 Unidades Fiscais de Referência do Estado do Rio de Janeiro (UFIRs-RJ) pela entidade de ensino superior. Além disso, as universidades estaduais e particulares devem fixar cartazes em seus respectivos “campi” em locais determinados com os seguintes dizeres:

“VETERANO!
TROTE É CRIME!

Constrangimento ilegal
Art. 146 Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

CALOURO !
Sentindo-se constrangido ligue 190!
Lei Estadual nº 2.538, de 19 de abril de 1996”.

E essa divulgação deve ser priorizada nos primeiros 90 dias do ano letivo da entidade de ensino superior.

No caso de São Paulo, a lei que proíbe o trote nas escolas da rede pública em qualquer nível de ensino foi publicada no dia 15 de setembro de 2015 e determina que os responsáveis sejam sujeitos à sanção de expulsão imediata da unidade escolar, se aluno e exoneração da função, se servidor público.

Além dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, a cidade de Pelotas (RS) aprovou a lei 5897 que proíbe trotes universitários. Na esfera federal, muito se discute acerca do trote e como evitá-lo quando, a simples fiscalização e imposição do código civil e penal a qualquer caso de trote vexatório ou violento já deveria ser suficiente para coibir esses excessos.

De quem é a responsabilidade?

Mais uma vez, vamos recorrer ao maravilhoso artigo da advogada Alessandra Strazzi, com o título Trote Universitário – responsabilidade dos agressores. No artigo, a advogada afirma que os agressores podem ser punidos nas esferas administrativa (perante a instituição de ensino), civil e penal.

Na esfera administrativa, o agressor pode ser suspenso ou até expulso. Além disso, muitas faculdades decidiram montar centrais de denúncia para casos de abusos, como por exemplo a USP, que montou o Disque Trote para monitorar esses casos.

Na esfera penal, “(…)os atos praticados nos trotes podem configurar diversas infrações penais, como, por exemplo, lesão corporal (art. 129, Código Penal), injúria (art. 140, Código Penal), ameaça (art. 147, Código Penal), constrangimento ilegal (art. 146, Código Penal) e até homicídio (art. 121, Código Penal).” A advogada ainda dá os seguintes exemplos de atos que podem configurar infrações penais:

  • “Cortar o cabelo total ou parcialmente do calouro contra sua vontade caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro.”
  • “Obrigar o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e, se esta ação é praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre), o crime passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como tentativa (art. 14, II do CP).”

Na esfera civil, vamos apenas copiar um trecho do artigo citado:

“Destaque-se que a violência não é apenas física: ela pode ser também verbal, psicológica. Ou seja, para configurar violência não é necessário que se deixe marcas físicas, bastando que o ato atinja a “dignidade da pessoa humana”, o princípio de Direito mais basilar da nossa Constituição, fundamento da nossa República (art. , III, Constituição Federal).

Em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, temos os direitos da personalidade, que são a expressão dos direitos fundamentais no Código Civil. Direitos da personalidade são situações jurídicas existenciais que tutelam os atributos essenciais do ser humano e o livre desenvolvimento da vida em convivência. Estão elencados, de forma exemplificativa, nos artigos 11 a 21 do Código Civil.

Os direitos da personalidade possuem atributos essenciais físicos, psíquicos e morais. Dessa forma, são proibidas quaisquer ações que visem violentar as convicções pessoais, políticas, filosóficas, religiosas e sociais do ser, bem como todas as práticas tendentes a aprisionamento da mente, a intimidar pelo medo ou pela dor, enfim, perturbadoras do discernimento psíquico.

Na hipótese concreta de lesão desses atributos nasce para o sujeito que sofre a violação a exigibilidade de reparação do dano moral (art. 927, Código Civil). Para a proteção dos direitos da personalidade não se exige dano efetivo, apenas a ameaça basta. A pessoa ofendida pode utilizar-se da tutela inibitória ou preventiva (para evitar ato ilícito).

O trote só será lícito se não for violento e for aceito livremente pelo calouro, sem nenhum tipo de coerção. Existem muitas modalidades de trote não violento como, por exemplo, o trote solidário, no qual as universidades procurar recolher doações de alimentos e roupas.

Menciono que é possível a responsabilização civil da própria faculdade perante o aluno agredido, ainda que o trote aconteça fora do espaço físico da instituição, pois a relação entre os alunos está ligada à entidade. O Código de Defesa do Consumidor garante que os serviços colocados no mercado de consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º, “caput”). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do serviço ou à sua omissão.”

Note que a instituição de ensino superior também pode ser responsabilizada civilmente pelo ato do trote.

O que os alunos pensam sobre o tema?

Para responder a essa pergunta, entrevistamos a Thais Zacharia, atual presidente do Centro Acadêmico de Engenharia (CAEng) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ouça a entrevista a partir do minuto 14:03.

Recados

Como conclusão, quero dar os seguintes recados aos grupos usualmente envolvidos, direta ou indiretamente, nos atos de trotes.

Recado às instituições

Reitores e responsáveis pelas instituições de ensino superior espalhadas pelo Brasil: a responsabilidade também é sua! Principalmente quando o trote ocorre nas dependências da universidade. Cabe à instituição investigar e aplicar punições adequadas para cada caso, além de proteger os alunos vitimados de qualquer perseguição ou ameaça de outros alunos.

Recado aos veteranos

Trote é crime! Ao menos no estado do Rio de Janeiro e São Paulo. Fora desses estados, muitos atos presentes nos trotes podem ser configurados como crimes. Embora universitário, você também é um criminoso se pratica os atos discutidos neste post.

Recado aos calouros

Denuncie! Se preciso, acione a polícia. Não se intimide. É seu direito aproveitar a sua universidade.

Recado à sociedade

Eu poderia chamar de recado às empresas, mas esse recado na verdade serve para qualquer cidadão. Não compactue com o crime. Um estudante que hoje, por conta de uma tradição idiota, agride e ridiculariza colegas deve ser responsabilizado pelos seus atos.

Como integrar calouros e veteranos

Diante de tantos abusos, fica a pergunta: será possível receber novos alunos no ensino superior e realizar a integração com os alunos antigos da instituição de forma saudável? Eu acredito que sim e dou as seguintes sugestões:

Eventos oficiais

As universidades podem organizar eventos de recepção de calouros oficiais, com apresentações de alunos antigos e palestras mostrando como a universidade funciona e quais são os direitos e deveres dos ingressantes.

Além disso, os veteranos podem ser motivados a apresentar seus trabalhos de iniciação científica e as principais atividades que a universidade disponibiliza além da sala de aula. Um conhecendo a universidade, que tal?

Fiscalização de abusos

Outra responsabilidade das instituições é realizar a fiscalização de possíveis abusos cometidos por estudantes e aplicar as devidas punições administrativas previstas.

Recepção solidária

Além das atividades citadas, por que não convidar os calouros a realizar atividades, junto com os veteranos, como doação de sangue, por exemplo? Eu imagino que a maioria dos calouros nunca tenham doado sangue, o que configura uma ótima oportunidade para esclarecer as vantagens da doação de sangue. Por que não salvar vidas, ou invés de ceifá-las?


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Links citados no programa

Os links citados podem ser encontrados no roteiro do programa.

Informações sobre o Centro Acadêmico de Engenharia (CAEng) da UFRJ

Site do CAEng

Página do CAEng no Facebook

Demais links e reportagens sobre o tema

http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/4005.pdf

http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13141

http://terramagazine.terra.com.br/blogdorizzattonunes/blog/2012/03/05/os-criminosos-trotes-estudantis-e-o-direito-do-consumidor/

http://noticias.r7.com/educacao/noticias/tudo-o-que-voce-queria-saber-sobre-o-trote-mas-tinha-medo-de-perguntar-20100208.html

G1

Comentários, dúvidas e sugestões

vecast@vidaestudantil.com

Crédito do artigo Trote universitário – Responsabilidade dos agressores

O artigo Trote universitário – Responsabilidade dos agressores pode ser acessado a partir dos seguintes links:

http://alessandrastrazzi.adv.br/direito-civil/trote-de-faculdade-responsabilidade-dos-agressores/

http://alestrazzi.jusbrasil.com.br/artigos/112788683/trote-universitario-responsabilidade-dos-agressores

Crédito das músicas de fundo

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