A guerra na Síria e a crise de refugiados. Como tudo começou? Acompanhe como a Primavera Árabe evoluiu até atingir a Síria e assolar o país com uma guerra civil culminando na atual crise de refugiados.

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Vamos à pauta!

Contexto Histórico

Assistimos nos dias de hoje uma das maiores crises mundiais em que milhões de sírios tentam chegar a um país na Europa a procura de segurança e condições dignas para viver. Essas pessoas fogem dos horrores de uma guerra civil, causada por um regime ditatorial extremamente violento, e de grupos radicais islâmicos que acreditam que causar o terror seja a forma mais eficiente de alcançar o poder. Os cidadãos sírios estão sendo massacrados em seu país natal, enquanto que o mundo, atônito, assiste a incrível fuga em massa de milhões de pessoas, e os países poderosos nada fazem para acabar com a brutalidade que massacra e tortura milhares de crianças e pessoas inocentes.

Para entender melhor como tudo começou, é preciso entender o que é chamado de Primavera Árabe e conhecer como o regime ditatorial se estabeleceu na Síria. Primeiro vamos abordar a Primavera Árabe.

Primavera Árabe

A Primavera Árabe é o nome dado a uma onda de protestos que começou em 2010 em diversos países do norte da África e Oriente Médio. Tudo começou em 17 de dezembro de 2010 na Tunísia, quando Mohamed Bouazizi, um jovem vendedor de rua de 26 anos, ateou fogo em seu próprio corpo ao ter suas mercadorias confiscadas pelo governo e negado o seu direito de vender nas ruas. O jovem tunisiano ajudava sua mãe e irmã com o dinheiro das frutas e verduras que vendia e teve sua mercadoria confiscada por não querer pagar propina aos policiais. Esse ato foi o estopim para revolta dos cidadãos tunisianos que já estavam descontentes com a corrupção no governo, o alto custo de vida e o alto nível de desemprego do país. A revolução na Tunísia ficou conhecida como a Revolução de Jasmim e terminou com a saída do Presidente Zine El Abidine Ben Ali após 24 anos de governo.

O exemplo da Tunísia desencadeou nos países vizinhos um efeito avalanche de protestos e manifestações. O povo acordou, de fato, tendo esperança de uma vida melhor e sem a opressão que viviam há décadas. Após a Tunísia, manifestações foram vistas em diversos países como Argélia, Jordânia, Omã, Egito, Iêmen, Bahrain, Líbia e Síria. Em muitos desses países houve grandes protestos e luta armada, sendo a guerra civil na Síria uma das mais terríveis e violentas.

Para entender melhor a violência na Síria de hoje, é preciso entender como a família al-Assad entrou no poder e governa a Síria desde 1971.

Histórico do regime governamental na Síria

Em 1971, após um golpe de estado Hafez al-Assad toma o poder na Síria e torna-se presidente. O governo de al-Assad é conhecido pelo forte controle do Estado e brutal repressão aos seus opositores. Em 1973, uma nova Constituição foi promulgada, garantindo a liderança do Partido Baath de Hassez al-Assad e concedendo poderes absolutos ao Presidente em todas as áreas. Paralelamente às forças de segurança do governo, o regime criou milícias pró-regime em todas as cidades: civis armados comprometidos com o combate a todas as formas de oposição ao governo de Assad. A intervenção do Estado em todos os níveis, juntamente com as políticas de repressão, garantiram a Hafez al-Assad a sua manutenção no poder. A violência do governo de al-Assad conheceu o seu ponto mais alto no conhecido massacre de Hama, em 1982, no qual, na sequência de uma revolta liderada pela Irmandade Muçulmana, as forças de segurança de Assad foram responsáveis pela morte de 20.000 pessoas. Para saber mais sobre o governo de Hafez al-Assad clique aqui.

Em 2000, após a morte de Hafez al-Assad, seu filho Bashar al-Assad assume o poder. A ideologia de Bashar não é muito diferente da de seu pai, ou seja, controle do estado e violência, muita violência na repressão aos seus opositores. Nesse ponto, podemos entender o porquê da revolução na Síria ter desencadeado uma guerra civil tão brutal.

Outro ponto que merece destaque é a relação do governo da família al-Assad com a antiga União Soviética e hoje com a Rússia. O governo de Hafez tinha como forte aliada a URSS e hoje a Rússia apoia o governo de Bashar al-Assad atacando, de acordo com os russos, bases do Estado Islâmico. Contudo, os EUA afirmam que os russos atacam na verdade são os opositores ao regime. Para ver mais detalhes sobre isso clique aqui.

Breve histórico da revolução na Síria

Após o início das revoluções da Primavera Árabe, na Síria um grupo de crianças, após ver na televisão que diversos regimes ditatoriais estavam sendo combatidos por levantes populares, resolveram pichar muros pedindo o fim do governo ditatorial. As autoridades do governo, ao descobrirem, mandaram prender as crianças que foram brutalmente torturadas e assassinadas. É claro que os pais dessas crianças não ficaram calados e procuraram informações de seus filhos e foram recebidos com sarcasmo e deboche típicos de governos ditatoriais. Começou então uma onda de manifestações populares mostrando a indignação do povo com o regime. Infelizmente, essas manifestações pacíficas eram duramente combatidas pelo governo que atirava contra os manifestantes e matava dezenas de pessoas. Aos poucos a revolta do povo foi aumentando, bem como a força dos protestos e a violência da repressão governamental. Nesse momento surge  o Exército Sírio de Libertação, formado por dissidentes das próprias forças militares da Síria, com a finalidade de combater o atual regime e começa a guerra civil.

Para piorar a situação, um grupo radical islâmico, denominado Estado Islâmico ou Isis (em inglês, Islamic State in Iraq and Syria), quer criar na região um Estado muçulmano em que basicamente quem não é muçulmano deve se converter ou então ser morto. Vamos falar a seguir sobre esse grupo terrorista.

Estado Islâmico

O Estado Islâmico (EI) é um grupo terrorista muçulmano fundado em 2004 no Iraque. O EI era inicialmente ligado a Al-Qaeda, mas hoje estão separados e são rivais.

O EI é formado por sunitas radicais que acreditam que os xiitas devem ser mortos por serem infiéis. Além disso, acreditam que todos os cristãos devem se converter ou então serem mortos. Resumindo, eles querem a morte de todo mundo exceto eles mesmos. É importante enfatizar que na verdade isso tudo tem muito pouco a ver com religião. Sunitas, que são a maioria dos muçulmanos (cerca de 90%), em geral, são pacíficos. A religião é usada por grupos radicais para convencer seus militantes a realizarem atos de extrema violência e conseguirem, assim, o poder.

O objetivo do EI é criar um Estado muçulmano que inclua as zonas sunitas do Iraque e da Síria. Infelizmente esse só é mais um grupo na Síria que ataca com extrema violência a própria população com requintes de crueldade, com o objetivo de causar o terror e tomar o poder.

Conclusão

Acredito que após toda a explicação que demos da situação na Síria não seja muito difícil entender o porquê que milhões de pessoas estão fugindo e se arriscando em travessias tão perigosas tanto pelo mar quanto pela terra. Milhares de pessoas se arriscam hoje a atravessar o mar Mediterrâneo em botes ou barcos clandestinos, tentando desesperadamente alcançar países europeus, e muitos estão morrendo nessa travessia como foi o caso do menino de apenas três anos encontrado morto numa praia da Turquia.

O que você faria se fosse um cidadão sírio em meio a uma carnificina? Como protegeria seus familiares? Não tentaria fugir? O pior é ver tantos países fechando suas fronteiras, negando apoio a famílias desesperadas que tentam simplesmente escapar da morte. É triste ver pessoas, que nem na imagem de uma criança de três anos morta afogada, conseguem ter compaixão.

Entrevista

Segue a entrevista realizada com a Salam de Alepo na íntegra:

1. Onde você estava quando a Primavera Árabe começou?

Eu gostaria de agradecê-lo pela oportunidade de falar sobre a situação nos países arábicos e particularmente no meu país, a Síria. Respondendo sua pergunta, eu estava na França quando a Primavera Árabe começou e eu estava assistindo TV, junto com os cidadãos sírios, para saber o que estava acontecendo na Tunísia, que foi um tipo de levante popular do povo árabe.

2. Como a Primavera Árabe começou?

A Primavera Árabe começou com a história de Mohamed Bouazizi, um cidadão da Tunísia que ateou fogo no próprio corpo como forma de protesto após ter sido mal tratado por autoridades policiais. Essa foi uma forma de mostrar a insatisfação das pessoas em relação à forma como os governos tratavam a população em seus países. Esse ato deu início à revolução em uma série de países árabes.

3. Você pode explicar como e por que a Primavera Árabe começou?

Como uma cidadã Síria eu posso dizer que os regimes que estão no poder nos países árabes são regimes ditatoriais. As pessoas não têm liberdade de expressão, ou seja, as pessoas não têm a liberdade de criticar o governo. Em geral, muita pressão leva a uma explosão, que foi o que aconteceu na Tunísia e se espalhou para os demais países como uma bola de neve. Então eu acho que a razão principal, que na verdade é a única razão, foi a opressão e a ditadura instalada há 30 anos e em alguns países há 40 anos, como no caso da Síria.

4. Como a revolução começou na Síria?

A revolução na Síria começou no distrito de Daraa, no sudoeste da Síria. A história começa no dia 15 de março de 2011 quando, alguns estudantes com idade entre 7 e 8 anos, estavam assistindo televisão, como basicamente todos no país, e viram que as pessoas queriam depor o regime. Essas crianças estavam escrevendo palavras de ordem em suas escolas quando alguns policiais e forças do regime as prenderam. Após serem presas, as crianças foram torturadas. Suas unhas e línguas foram arrancadas. As famílias reclamaram perguntando onde as crianças estavam e porque elas estavam sendo torturadas dessa maneira. A polícia respondeu aos pais: esqueçam suas crianças, vão para casa e façam novas e se vocês não forem capazes disso, mande-nos suas mulheres e nós cuidaremos da situação. Essa resposta foi muito ofensiva às pessoas, então o povo saiu às ruas para protestar dizendo que as pessoas não devem ser tratadas dessa maneira. A reação do regime e da polícia foi atirar contra os manifestantes, o que produziu vítimas e mártires. Assim, no dia seguinte, conforme ocorria os funerais das primeiras vítimas, mais protestos foram realizados exigindo que a população fosse tratada com respeito e dignidade. Mais uma vez, a reação do regime foi atirar contra os manifestantes. Por causa disso, mais vítimas foram mortas e o processo se reiniciou no dia seguinte, fazendo com que a revolução passasse a ser mais sangrenta.

5. Os protestos eram violentos no início da revolução?

Particularmente, no caso da Síria, o levante se iniciou pacificamente. As pessoas caminhavam nas ruas levando flores e bandeiras brancas, dizendo que elas apenas queriam reformas, liberdade e respeito. Não houve violência ou ataques contra a polícia ou quaisquer forças. Inclusive, na Síria não é permitido portar armas nas ruas, então a população não é armada.

6. Quais eram as principais demandas da população?

O povo da Síria está buscando liberdade e respeito, sendo que o respeito é o mais desejado, juntamente com a dignidade. A revolução também foi conhecida como a revolução da dignidade.

7. Nesse contexto, quais ações, ou lados, os demais países escolheram?

No início, todos os países árabes próximos da Síria fizeram apenas declarações dizendo que o regime estava agindo de forma violenta contra o povo, que o presidente Bashar al-Assad deveria iniciar um processo de reforma, e fazer alguma coisa pelo povo, mas na verdade, nenhuma ação real foi tomada. As ações efetivamente tomadas foram o fechamento das embaixadas e o estabelecimento de algumas restrições contra o povo sírio. Essas foram as primeiras reações dos países árabes próximos sobre essa situação.

8. Como o ISIS, ou o Estado islâmico começou?

Bem, do nada, nós começamos a ouvir falar do ISIS, ou Estado Islâmico, no Iraque e na Síria. Rumores dizem que aqueles que começaram esse movimento eram pessoas que haviam sido presas no Iraque. Eles foram soltos pelo regime sírio porque o regime tem influência sobre o governo iraquiano. Então essas pessoas foram libertas e treinadas para lutar usando armas brancas, como facas, e, debaixo dos panos, eles eram financiados pelo regime e começaram a dominar territórios.

9. Qual é o papel do Estado Islâmico nessa crise?

Como uma cidadã síria, eu posso dizer que a criação do Estado Islâmico foi como a criação de um monstro que pode cometer crimes mais violentos, brutais e assustadores do que os crimes cometidos pelo regime. Essa estratégia é adotada para mostrar que tudo o que o presidente Bashar al-Assad está fazendo, como as prisões, mortes, torturas e fome não são nada comparado ao que o Estado Islâmico está fazendo em nome de Deus. Assim, se as pessoas tivessem que escolher entre o Estado Islâmico e o regime, elas escolheriam o regime, fazendo com que o presidente ganhasse novamente. Essa impressão tem se espalhado internacionalmente, a ponto de outros países não entenderem porque os cidadãos sírios estão descontentes com o governo, uma vez que ele seria muito melhor que o Estado Islâmico.

10. O Estado Islâmico deseja estabelecer um califado islâmico e eles dizem que estão lutando em nome de Deus. Qual é a sua opinião sobre isso?

Como muçulmana, eu posso dizer que o comportamento do ISIS não representa de forma alguma o comportamento islâmico, nem a vontade de Deus na terra. Eu posso dar um exemplo sobre o comportamento do ISIS e mostrar porque isso não faz sentido para o povo muçulmano. Há alguns anos, havia um menino de 14 anos que tinha um pequeno comércio na cidade de Alepo, em Racaa se não estou enganada. Algumas pessoas do ISIS pediram para levar os produtos do rapaz sem pagar por eles. O garoto então respondeu que ele nunca permitiria que alguém levasse sua mercadoria sem pagar, mesmo o próprio profeta Mohamed teria que pagar. Então, os integrantes do ISIS mataram o garoto na frente da casa dos seus pais para mostrar a todos da cidade que se você disser qualquer coisa contra o profeta Mohamed, esse será seu destino.

Na verdade, esse comportamento não condiz com o islã e com os ensinamentos do profeta Mohamed. O profeta Mohamed nunca mataria o rapaz, mesmo que essa situação tivesse acontecido com ele, e não aceitaria a morte de uma pessoa como punição por apenas proferir palavras.

Isso mostra que essas pessoas estão se escondendo por trás do islamismo, se escondendo atrás do nome de Deus e estão dispostas a matar, mostrando que quem quer que se oponha a eles será morto. Eles estão aplicando uma suposta vontade de Deus. Nenhuma pessoa racional que conheça o Islã diria que esse comportamento corresponde com uma religião de paz.

11. Obviamente, esses conflitos deflagraram a crise de refugiados que estamos observando hoje. Existem outros fatores que aumentam ou contribuem para essa crise?

As pessoas apenas querem fugir da matança e das situações de fome e escassez e condições humanitárias ruins. Na verdade, o regime cercou algumas cidades e impediu que comida, água, eletricidade e remédios chegassem a algumas cidades. Isso fez com que a vida em diversas cidades se tornasse muito difícil. As pessoas então saíram e começaram a procurar por lugares que fossem seguros para viver.

12. Que ações os países mais próximos da Síria estão tomando em relação à crise de refugiados?

Nós, como cidadãos sírios, estamos surpresos com a reação dos países em torno da Síria em relação aos refugiados, porque entre 2003 e 2004, durante a guerra do Iraque, a Síria foi muito generosa com os iraquianos que fugiam da guerra. As pessoas abriram suas casas para receber famílias e dividiam seus recursos com os refugiados. Algo similar ocorreu em 2006 durante a guerra entre Israel e Líbano, quando a Síria recebeu refugiados do Líbano. Então agora estamos realmente surpresos por que o Iraque, Líbano e outros países estão fechando suas fronteiras contra o povo sírio, por que tanta pressão está sendo colocada sobre as vítimas do confronto ao invés de combater o principal motivo do problema?

13. Além da Europa, de forma geral, você tem conhecimento de qualquer outro país que esteja recebendo refugiados?

Se eu não me engano, o Brasil está recebendo refugiados, talvez outros países da américa latina também estejam, mas eu não tenho certeza. Eu acho que o Irã também está recebendo refugiados, embora eu ache que eles recebam apenas refugiados favoráveis ao governo sírio.

14. Como o atual regime sírio chegou ao poder?

O regime chegou ao poder na Síria em 1970 quando o pai de Bashar al-Assad, Hafez al-Assad, protagonizou um golpe de estado em março de 1970. Antes disso ele era ministro da defesa e decidiu realizar o golpe para tomar o poder à força. Em seguida, ele começou a realizar mudanças no exército, retirando os generais sunitas de suas posições e substituindo-os por alauitas, fazendo com que o exército seja leal a ele e seu grupo religioso. Assim, a Síria saiu de uma democracia para um regime ditatorial, governado por um grupo religioso minoritário. Um levante popular começou a ter início no período entre 1975 e 1980, mas o regime reagiu a isso de forma muito violenta, prendendo e matando pessoas. Seu maior massacre foi em fevereiro de 1982, em uma cidade chamada de Ramah. O regime decidiu realizar um cerco na cidade e começou a bombardeá-la. Em 28 dias, ele matou cerca de 40 mil pessoas, destruindo uma grande parte da cidade. Além desse, o regime realizou diversos outros massacres.

Por conta da violência exacerbada do regime, a oposição ao governo foi calada e as pessoas silenciadas no país por 30 anos. Até que a Primavera Árabe começou na Tunísia e se alastrou para o Egito, Líbia, Iêmen e outros países, inspirando as pessoas na Síria de que o tempo do silêncio havia terminado. Foi isso o que deflagrou a revolução na Síria.

15. Além do regime, a população na Síria é pacífica?

Certamente, eu posso confirmar que a população da Síria é pacífica. Eu costumava viver junto com outros muçulmanos, cristãos e outros grupos religiosos. Nós tínhamos cerca de 77 grupos religiosos muçulmanos e outras religiões. Essa mistura de pessoas formava uma sociedade linda. Eu lembro de ter tido amigos cristãos, alauitas e não havia ódio entre nós, ou conflitos no país. Até que o regime decidiu começar a mexer com isso, dizendo que as minorias na Síria sempre estavam expostas aos ataques da maioria sunita, fazendo com que as pessoas fossem levadas a crer que o governo defenderia essas minorias, quando na verdade, o governo estava apenas usando as minorias para se esconder, já que há séculos, existiam famílias cristãs e alauitas sem que a maioria sunita as atacasse.

16. Existe algum outro grupo lutando na Síria além do governo e do Estado Islâmico?

Hoje em dia, na Síria, não existe apenas uma luta entre o governo e a oposição. Eu gostaria de esclarecer que o ISIS não está lutando contra o governo, de forma alguma! Ao contrário, eles estão lutando juntos contra a oposição e o Exército Sírio de Libertação. Deixe-me esclarecer o que é o Exército Sírio de Libertação e como ele foi fundado. As pessoas que hoje fazem parte desse exército pertenciam ao exército oficial da Síria. Quando o regime, no início da revolução em 2011, mandou pelotões para atirar contra a população que protestava, alguns soldados e generais, ao ver que a população se manifestava pacificamente, com flores nas mãos, se recusaram a atirar nas pessoas. Alguns desses soldados foram mortos pelos seus superiores, mas uma parte deles foi bem sucedida em fugir do exército levando seus equipamentos e armas. Assim, eles começaram, de pouco em pouco, a construir um exército que se autodenominou de Exército Sírio de Libertação.

Já o regime, ao ver que estava perdendo soldados e generais, começou a ser financiado pelo Resbolar no Líbano e pelo exército da revolução no Irã e há pouco tempo, cerca de meses atrás, o governo tem recebido ajuda e recursos diretamente da Rússia, o que faz com que o conflito fique desbalanceado, com o governo possuindo vantagem militar. Enquanto o Exército Sírio de Libertação está sendo pouco financiado por alguns países árabes, como a Arábia Saudita e países da região do golfo pérsico. Eu não posso confirmar essas informações porque não há nada oficial em relação a esse apoio, mas rumores e a lógica nos fazem crer que esse financiamento está ocorrendo.

Como uma cidadã síria eu diria que nós não precisamos de mais auxílio militar, não precisamos de mais mortes, nós precisamos de alguém que estabeleça a paz na Síria. Se todos parassem de enviar apoio militar para a Síria, a própria população seria capaz de derrubar o atual governo e reconstruir o país novamente.

17. E quanto aos Estados Unidos, você saberia dizer qual posição o país está tomando nesse conflito?

Oficialmente, os Estados Unidos não está auxiliando nem o regime, nem a oposição, mas o seu silêncio e sua postura em não tomar nenhuma atitude diante de uma situação tão crítica significa ajudar o ofensor. Nós tínhamos a esperança de que os Estados Unidos, sendo a nação mais poderosa no mundo, iria tomar uma atitude séria em relação ao regime, uma vez que é uma nação que diz estar preocupada com os direitos humanos e a paz mundial. Nós esperávamos que uma atitude séria fosse tomada contra Bashar al-Assad, mas ficamos muito desapontados com essa atitude de silêncio que já dura quase 4 anos e meio.

18. E em relação à ONU?

A ONU também tem mantido uma postura de silêncio. Na verdade, eles apenas têm organizado conferências e feito anúncios. O que parece é que eles fingem levar a sério a situação Síria e, na verdade, nós não vemos nada ser efetivamente feito e as pessoas já estão cansadas de apenas ouvir pronunciamentos sem nenhuma ação concreta.

19. Por favor, compartilhe conosco outras histórias que você conheça sobre a revolução e a crise de refugiados.

Eu gostaria de falar sobre duas coisas. Primeiro quero compartilhar uma história que aconteceu com os civis residentes da cidade de Alepo e em seguida vou comentar sobre o sofrimento que as pessoas estão passando ao tentar deixar o país.

O que me toca pessoalmente, foi o bombardeio que ocorreu na faculdade de Arquitetura de Alepo que ocorreu em 15 de janeiro de 2013. Nesse dia, eu perdi dois amigos da minha família e foi muito difícil. Aquele era o primeiro dia de provas na faculdade e as pessoas e estudantes estavam indo e vindo da universidade quando, às 11 horas da manhã, basicamente do nada, um avião bombardeou a cidade, matando pelo menos 500 pessoas. As autoridades disseram que o incidente ocorrera devido à explosão de um carro-bomba detonado pelos rebeldes da revolução para colocar medo nas pessoas. Mas aeronaves foram vistas disparando dois foguetes na cidade e, pela lógica, aeronaves de guerra não lançam carros-bomba. Essa foi uma história inventada pelo governo colocando a culpa nos revoltosos para causar medo.

Essa história me sensibiliza muito porque foi um ataque direcionado contra civis, contra estudantes. Foi apenas um recado do governo dizendo que ele não se importa com ninguém. Não importa se você tem ou não educação, se você está a favor ou contra o regime. Eu simplesmente vou matar quem eu quiser e inventar a história que eu quiser para encobrir. E é isso, as vítimas eram apenas crianças, estudantes de 17 ou 18 anos. Pessoas inocentes.

A segunda situação que eu quero compartilhar é a situação humanitária na cidade de Alepo. O regime está colocando muita pressão em cima da população civil da cidade, não importando se as pessoas são contrárias ao governo ou não. A situação em relação a necessidades básicas é muito difícil, principalmente em relação à água, comida e eletricidade. Eu soube que, recentemente, a eletricidade é fornecida às casas uma hora por dia e o fornecimento de água é feito durante algumas horas por semana. Imagine como essa situação é difícil para crianças de colo e pessoas de idade. Podemos imaginar também os problemas relacionados à saúde por causa da propagação de doenças que podem se desenvolver em ambientes com essa situação ruim. Além disso, há também a falta de remédios, médicos e enfermeiros na cidade. A cidade precisa de ajuda urgente principalmente nessa época do ano, quando o inverno está chegando e a temperatura chega perto de zero e sem eletricidade não há aquecimento. As pessoas estão passando por uma situação muito difícil e não conseguimos ver uma luz para a resolução dessa situação.

Essas são as razões porque as pessoas estão saindo dos seus países e de suas casas. Elas estão em busca de lugares em que haja condição de vida aceitável. É por isso que as pessoas estão arriscando suas vidas, entrando em barcos, que agora estão sendo chamados de barcos da morte. Elas estão deixando tudo para trás enquanto tentam alcançar uma costa ou um país em que elas possam viver em boas condições ou ao menos viver. Todos estão acompanhando as notícias das pessoas que estão morrendo em barcos de refugiados ilegais, como o caso do garoto de 3 anos encontrado morto na costa de uma praia da Turquia sendo que seus pais estavam tentando ir para a Itália. Nós podemos testemunhar mais uma vez quem está de fato pagando o preço de todas essas guerras: a população civil e principalmente as crianças, que estão pagando a conta de coisas e fatos que elas nem ao menos entendem.

20. Você comentou que o governo tem prendido um número considerável de pessoas desde o início dos protestos, você saberia dizer o que acontece com essas pessoas depois que são presas?

Desde a década de 80, sabemos que o governo é muito opressor e violento contra aqueles que se opõem a ele. E agora temos ouvido muitas histórias sangrentas e dolorosas sobre aqueles que são presos nos porões do regime. Nós até costumamos dizer que a revolução na Síria se dá muito pelo subsolo das cadeias do regime e não só pelas ruas. São nesses lugares em que jovens, mulheres e crianças, não importando se são estudantes, engenheiros ou médicos, são presos apenas por acreditarem na revolução, acreditarem na mudança. E é comum que sejam torturados até a morte e vivam em péssimas condições, muitas vezes sem receber água, comida ou aquecimento. As torturas são feitas por choques elétricos e a chamada cadeira alemã. Muitos deles nós nem sabemos se ainda estão vivos. Nossa esperança é que essas pessoas sejam libertas e possam voltar às suas famílias.

21. Muito obrigado por conceder essa entrevista, Salam.

Muito obrigada. Eu gostaria de agradecer por essa oportunidade e espero que minha voz possa ser ouvida por todo o mundo e que a paz chegue para a Síria e todos os demais países ao redor do mundo.

É isso pessoal, até o próximo VECast, no dia 30 de outubro!


Outros links legais sobre o assunto

482 – Em nome de Alá – Episódio sobre os últimos atentados em Paris do excelente podcast do Portal Café Brasil. Muitas informações compartilhadas nesse episódio complementam nossa entrevista.

Quem luta contra quem na Síria – Reportagem da BBC Brasil explicando a posição de diversos grupos e países no conflito.

Iraq Explained – ISIS, Syria and War – Vídeo no Youtube explicando as guerras do Iraque, da Síria e a formação do Estado Islâmico (o vídeo está em inglês, mas tem legendas em português).

The European Refugee Crisis and Syria Explained – Vídeo no Youtube explicando a crise de refugiados (o vídeo está em inglês, mas tem legendas em português).

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